sexta-feira, 23 de maio de 2014

RECEITA PARA LAVAR PALAVRA SUJA

 Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida.

Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.

São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada.
Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão.

Agora nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas
soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,que é capaz de esvaziar o vigor da língua.

O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.

O perigo neste caso é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.

Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode, o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.

Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.

A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,
produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.

Muito importante na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.

Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos, que passeie
pela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite, não a seu lado mas sobre seu corpo.

Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne,
prolifera em toda sua possibilidade.

Se puder suportar essa convivência até não mais
perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.

Uma palavra LIMPA é uma palavra possível.


Viviane Mosé

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

DEPOIS DOS 40

Depois dos 40 anos, o pensamento feminino muda, desembaraça.

O sexo não é mais performance, exaustão, é fazer o que se gosta e do jeito que gosta. É aproveitar dez minutos com a intensidade de uma noite inteira, é reconhecer o rosto do próprio desejo no primeiro suspiro, é optar pela submissão por puro prazer, sem entrar na neurose da disputa ou do controle.

A mulher de 40 não diminui o ritmo da intimidade. Pode ler um livro com a intensidade de uma transa. Pode assistir um filme com a intensidade de uma transa. Pode conversar com a intensidade de uma transa. Ela não tem um momento para a sensualidade, a sensualidade é todo momento.

Tomar o café da manhã não é apenas um desjejum, tem a sua identidade, o seu ritual, um refinamento da história de seus sabores. Tomar o café da manhã com uma mulher de 40 anos é participar de sua memória, de suas escolhas.

Ela não precisa mais provar nada. Já sofreu separações, e tem consciência de que suporta o sofrimento. Já superou dissidências familiares, e tem consciência de que a oposição é provisória. Já recebeu fora, deu fora, entende que o amor é pontualidade e que não deve decidir pelo outro ou amar pelos dois.

A mulher de 40 anos, cansada das aparências, cometerá excessos perfeitos. É mais louca do que a loucura porque não se recrimina de véspera. É ainda mais sábia do que a sabedoria porque não guarda culpa para o dia seguinte.

A beleza se torna também um estado de espírito, um brilho nos olhos, o temperamento. A beleza é resultado da elegância das ideias, não somente do corpo e dos traços físicos.

Encontrou a suavidade dentro da serenidade. A suavidade que é segurança apaixonada, confiança curiosa.

O riso não é mais bobo, mas atento e misterioso, demonstrando a glória de estar inteira para acolher a alegria improvisada, longe da idealização, dentro das possibilidades.

Não existe roteiro a ser cumprido, mapa de intenções e requisitos.

Há a leveza de não explicar mais a vida. A leveza de perguntar para se descobrir diferente, em vez de questionar para confirmar expectativas.

Ser tia ou mãe, ser solteira ou casada não cria angústia. Os papéis sociais foram queimados com os rascunhos.

A mulher de 40 é a felicidade de não ter sido. É a felicidade daquilo que deixou para trás, daquilo que negou, daquilo que viu que era dispensável, daquilo que percebeu que não trazia esperança.

Seu charme vai decorrer mais da sensibilidade do que de suas roupas. O que ilumina sua pele é o amor a si, sua educação, sua expressividade ao falar.

A beleza está acrescida de caráter. Do destemor que enfrenta os problemas, da facilidade que sai da crise.

A beleza é vaidosa da linguagem, do bom humor. A beleza é vaidosa da inteligência, da gentileza.

Depois dos 40 anos não há depois, é tudo agora.

Fabrício Carpinejar

Publicado na Revista Isto É Gente
Março de 2014 p. 50
Ano 14 Número 706
Colunista